Renzo Taddei – 25 de março de 2020
Hoje, pela manhã, em conversa por WhatsApp com parentes quarentenados, ao falarmos sobre o pronunciamento do Bolsonaro da noite de ontem, um adolescente da família postou um emoticon de careta e disparou: “qual o problema desse cara?” Mais tarde, encontrei nas redes sociais vídeo postado por um grande amigo argentino, Hugo Partucci, em que ele toca, ao violão, canção composta por seu grupo artístico há alguns anos, e que fala de um adulto que, vivendo a perseguição política da ditadura argentina, coloca uma criança para dormir e deseja a ela que tenha bons sonhos. De repente, numa dessas associações de ideias que aparecem de forma espontânea na mente, ocorreu-me que, se nós, adultos, não estragarmos as coisas, o COVID-19 pode melhorar tremendamente a vida política do Brasil.
A ideia, algo contra intuitiva, reconheço, é a seguinte: as pessoas da minha geração (tenho 47), com margem de variação de menos ou mais quinze anos, viram as coisas darem mais ou menos certo da forma bastante errada na política brasileira, e com isso desenvolveram uma atitude cínica com relação ao processo político, de maneira geral. Este cinismo se manifesta, de forma explícita ou nas profundezas do subconsciente, no pensamento algo recorrente que diz que eleições não servem pra nada, que são um imenso teatro para manter as mesmas elites de sempre no poder. Com o Bolsonaro no Planalto, se a juventude entender o que está acontecendo sem herdar nossos vícios de pensamento e nossas emoções apodrecidas, as coisas podem mudar. Que criança ou jovem que tenha memória, no futuro, do que está acontecendo agora vai pensar que as eleições não são importantes? Ocorre, no entanto, que podemos estragar tudo se não tivermos cuidado.
Quando digo que as coisas deram certo da forma errada, refiro-me especificamente ao fato de que no Brasil, desde o fim da ditadura, as coisas caminham mas nunca segundo as aspirações da população. O país se redemocratizou, mas o movimentos Diretas Já não teve sucesso; posteriormente, o processo democrático se estruturou de forma lenta e insegura, com Sarney, Collor, Itamar e FHC, sem que as elites que defendem políticas excludentes tivessem arredado pé do governo por um segundo sequer. O consolo vinha sempre na forma do mantra “O Brasil é uma democracia jovem”. Com o PT no governo, as ânsias e desejos do passado se reascenderam; houve um período de êxtase na juventude progressista, enquanto o Lula distribuía o excedente do dinheiro do pré-sal, associava-se aos banqueiros e não fazia as reformas necessárias nem uma distribuição de renda estrutural e efetiva. Quando a coisa toda desmoronou, veio junto o que restava de esperança naquela geração de jovens no processo político. Sobrou desesperança e amargura, mesmo que em um país mais rico, mais educado e menos desigual do que há 30 anos.
Tenho amigos e parentes que, antilulisticamente, ajudaram a colocar o Bolsonaro no poder. A grande maioria parou de dizer “ah, mais no tempo do PT…” quando o governo Bolsonaro começou a patinar no seu tratamento da epidemia. Depois do pronunciamento de ontem, praticamente todos eles estão gritando “impeachment” nas redes sociais. E o que está fazendo a maioria dos que sempre foram mais politicamente alinhados comigo? Está postando mensagens de ódio, do tipo “deixa eu avisar que eu lembro de cada pessoa da minha lista de contatos que votou no Bolsonaro”, ou inserindo a expressão “eu avisei” nos seus nomes, em seus perfis de redes sociais. Até ontem, isso não me espantava. Hoje de manhã ocorreu-me que podemos estrar estragando a única oportunidade que nos resta de ver o processo político melhorar.
Em que contexto político um grupo vê o rival mudar para o seu lado, e ao invés de congratular-se, reage com ódio? Nossa geração está destruindo o pouco que sobrou da política – com ajuda dos algoritmos das redes sociais, sem dúvida. Em algum momento paramos de fazer política, aquela estruturada ao redor da ideia de que os outros têm direito de pensar diferente e a melhor forma de lidar com isso é exatamente que eles venham dizer isso na nossa cara, e escutem o que temos a dizer a respeito. O processo político virou a válvula de escape de nossas frustrações e da nossa raiva. No processo eleitoral, parecia que os antipestistas eram os que estavam votando com o sistema digestivo. Depois das eleições, aparentemente todo o país passou a viver a política de forma gástrica, e nada mais. A reação mais natural, por ser espontânea e porque já a naturalizamos, é insultar o Bolsonaro quando temos que mencionar o seu nome.
Ocorre, no entanto, que isso pode ter consequências terríveis a longo prazo. Mudemos um pouco a perspectiva da cena: saia dos teus olhos e entre nos da criança que te observa, enquanto você, aos brados, diz que o presidente é um jumento, um palhaço, um imbecil, um retardado, uma pilha de esterco, um psicopata, um monstro, um assassino, um genocida. O que você acha que está acontecendo no pensamento desta criança?
Se há lições a serem aprendidas com o COVID-19, acredito que uma das mais importantes não seja para a nossa geração, mas para a das crianças e jovens. Se eles entenderem que o que causou isso, de forma mais imediata, foi o voto, e que é pelo voto que isso pode ser evitado, jamais terão atitude cínica como a nossa. O processo democrático no futuro será mais maduro e verdadeiro.
Só não vai acontecer se contaminarmos a percepção que os jovens têm da política, com tanto refluxo verbal, de modo que eles não sejam capazes de perceber que o momento atual mostra, com clareza que minha geração nunca teve, o valor que o voto tem. É preciso que admitamos, então, nossas limitações, para que possamos ajudar as crianças e jovens a construírem realidade melhor do que a nossa.
Para tanto, é preciso tratar dos sentimentos que temos dentro de nós, sobre o governo, sobre o papel que o estado-nação tem em nossas vidas, sobre a forma como nos fizemos dependentes e vulneráveis a coisas que não controlamos; precisamos tentar aprender com quem vive de forma mais autônoma, livre e em paz, e precisamos trabalhar para que a relação entre o estado e as pessoas seja mais saudável no futuro. É possível que não sejamos mais capazes de consertar isso; o que estou argumentando aqui é que talvez nossos filhos o sejam, e não devemos atrapalhá-los com nossas limitações. O elemento mais inconveniente do fato de que nossa reação às ações do Bolsonaro é gastrointestinal é não conseguirmos fazer efetivamente nada que mude as coisas com isso. Há, inclusive, a possibilidade de que isso seja estratégia bolsonarista. Quem consegue pensar de forma politicamente estratégica, hoje, não está dando chilique.
Isso tudo passa, a meu ver, por não alienar os jovens do que está acontecendo, no sentido de “protegê-los”. Quando fazemos isso, estamos apenas materializando o pensamento de que eles não poderão ser melhores do que somos e fomos. Quem pensa assim não está colocando a devida atenção em quem são as crianças e jovens de hoje. Ao invés de pautar sua compreensão da realidade pelo programa do Datena ou do Ratinho, olhe ao seu redor, escute as conversas das crianças e jovens, e compare com o que éramos a três ou quatro décadas. Tenho a impressão forte de que muita gente nesta geração nova é mais capaz de empatia, de colaboração, de amor e de perdão do que éramos (e somos).
É preciso encontrar formas de fazer os jovens entenderem o que está acontecendo sem repetir neles nossas limitações emocionais, nossa incapacidade de manter a serenidade, nossos traumas. Por isso, antes de falar aos jovens sobre o que deveria estar acontecendo e não está, tomemos o tempo de tentar analisar o que se passa com nossas emoções, com nossa necessidade de descarregar as emoções negativas através da política (o que aniquila a capacidade da política ser tudo o que poderia). E trata-se mais de postura afetiva do que de ação: podemos e devemos bater panela, assinar petições pedindo o impeachment, participar de manifestações de rua quando o perigo do COVID-19 estiver controlado, e estarmos preparados para a desobediência civil. Mas agindo com a cabeça, e não com os intestinos. Crianças e jovens são imensamente capazes de perceber o que nos move, e isso pode deixar neles marca profunda, positiva ou negativa.
Se fizermos isso tudo – o que vai tomar algum tempo e não vai ser fácil -, podemos pelo menos contribuir para a formação de uma nova geração que será imensamente mais capaz de viver em comunidade e resolver seus problemas de forma pacífica e colaborativa. O ponto central do meu pensamento, entenda-se bem, não é transferir aos jovens a responsabilidade de resolver algo que não fomos capazes. É apenas aproveitar a intervenção drástica e em escala planetária do COVID-19 para que tratemos nossas feridas politico-emocionais, e sejamos capazes de deixar que a crise seja uma lição de crescimento civilizacional para crianças e jovens. Se isso vai ser amargo ou sereno para eles, depende muito de como nossas emoções embotadas afetarão a mensagem.