Por Renato Grandelle, 16/12/2015
Embarcação atravessa geleira em setembro: nova rota marítima facilita comércio entre países – Divulgação/Greenland Travel
RIO – Maior vitrine do aquecimento global, o Ártico viu uma elevação recorde de seus termômetros nos últimos meses. A temperatura do ar na região entre outubro de 2014 e setembro de 2015 foi de 1,3 grau Celsius acima da média desde 1900, quando começaram os registros. O aumento total da temperatura neste período foi de 3 graus Celsius.
De acordo com o levantamento “Arctic Report Card 2015”, divulgado ontem pela Administração Nacional de Oceanos e Atmosfera dos EUA (Noaa), a expansão máxima do gelo no Ártico ocorreu em 25 de fevereiro, duas semanas antes do normal. Sua extensão foi a menor desde o início dos registros, em 1979.
O gelo remanescente mudou de perfil. É cada vez mais “novo”, e, por isso, fino e vulnerável ao aquecimento. Sua porção que tem menos de um ano de idade é duas vezes maior do que a vista há 30 anos. Em algumas regiões do Alasca e da Groenlândia, a temperatura da superfície do mar aumenta cerca de 0,5 grau Celsius por década desde 1982.
— Não sabemos por que a extensão do gelo ocorreu tão cedo desta vez — admite Martin Jeffries, pesquisador de Previsão Global e do Ártico no Programa de Pesquisa Naval de Arlington, na Virgínia (EUA), e um dos autores do relatório, assinado por 70 cientistas de dez países — Veremos cada vez mais mudanças nos ecossistemas da região, que serão transformados pelo aumento da temperatura do ar.
A Noaa alerta que o Ártico está aquecendo duas vezes mais rápido do que outras partes do mundo. Se a temperatura do planeta avançar 2 graus Celsius — o máximo considerado tolerável pelos cientistas —, os termômetros naquela região se elevariam entre 4 e 5 graus Celsius.
No relatório, o órgão americano afirma que o aumento da temperatura do Ártico tem implicações em áreas como segurança global, clima e comércio. Por isso, é necessário formular projetos de fornecimento de informações para o poder público, a indústria e a sociedade civil.
No auge do verão, mais da metade da superfície da camada de gelo da Groenlândia derreteu — 22 de suas 45 maiores geleiras encolheram, em relação aos registros do ano passado.
— As geleiras perdem massa conforme a água escorre para o oceano — conta Jeffries. — Seu derretimento, mesmo que seja parcial, vai contribuir para a elevação do nível do mar e será uma ameaça global para as comunidades costeiras e diversos ecossistemas.
O permafrost — como é conhecido o gelo permanente sobre o solo — também começa a ceder, especialmente no Canadá e na Sibéria, liberando mais metano e gás carbônico para a atmosfera.
Coordenador-geral do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Jefferson Cardia Simões avalia que o levantamento da Noaa é um retrato do “novo Ártico”:
— Nunca estes fenômenos adversos ocorreram tão rapidamente — alerta. — A mudança principal é a retração do mar congelado durante o verão. Em 20 anos, a extensão mínima do gelo passou de sete milhões para 4,5 milhões de quilômetros quadrados.
Quando há menos gelo marinho, o oceano absorve mais energia solar. Seu aquecimento afeta zooplânctons e fitoplânctons, a base da cadeia alimentar.
Jeffries destaca que espécies maiores, como peixes e morsas, também já sofrem com a mudança da temperatura:
— As morsas são grandes mamíferos marinhos que usam o gelo do mar para o acasalamento, locomoção e abrigo contra tempestades e predadores. Agora, estas atividades estão seriamente prejudicadas — alerta. — Nos últimos anos, um grande número de espécimes teve de se deslocar por terra até o Alasca. Houve problemas como a superlotação e a dificuldade para encontrar alimentos.
Os peixes de regiões temperadas, como o bacalhau e o cantarilho, estão migrando para o Norte, competindo por alimentos com outras espécies que habitam o Ártico.
A migração contínua de peixes para o Norte poderia ser mais um dos motivos para conflito dos países ao redor do Ártico. O derretimento do gelo abriu espaço para cada vez mais atividades econômicas na região, como a pesca oceânica, a extração de petróleo e gás e a navegação.
— O aumento da temperatura do Ártico pode desencadear uma série de questões geopolíticas — assinala Simões. — O mar aberto no verão criou uma nova rota para navegações dos EUA e Europa para a Ásia. Até a China, que não é um país da região, quer se aproveitar deste caminho, o que provoca ressalvas da Rússia. As nações também tentam expandir sua zona econômica exclusiva, para que possam explorar com liberdade os recursos minerais locais. Há mudanças de estratégias militares e questionamentos de soberania.
CONSEQUÊNCIAS NO BRASIL
As consequências climáticas, políticas e econômicas do aquecimento do Ártico atraem países distantes do gelo. O Brasil participou este ano pela primeira vez de uma reunião da ONG Arctic Cicle, financiada pelo governo da Islândia. Simões integrou a delegação nacional:
— Recomendamos que o Brasil monitore como será o futuro da região. O Ártico pode ser palco de muitas transformações que abalarão todos nós. A economia global, por exemplo, será alterada se for viável explorar gás e óleo na região. E ainda devemos estudar se o aquecimento registrado lá pode afetar os trópicos. É possível que haja uma relação entre o desaparecimento do gelo e o regime de chuvas no Brasil.
Para Simões, os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas foram “conservadores” ao abordar o que pode acontecer com o Ártico.
— Considerando o modo como ele se aquece, e as metas insuficientes estabelecidas por cada país durante a Conferência do Clima, o Ártico pode não congelar mais no verão até 2040 — lamenta. — Muitas alterações atuais ainda são desconhecidas. Mas já vemos que a circulação de ventos está alterada e provoca ondas de frio intensas no Hemisfério Norte.