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Ensaio

Do folclore à cidadania

Em tempos de discussão acirrada sobre os efeitos do aquecimento global, o pesquisador Renzo Taddei avalia que as populações tradicionalmente vitimadas pelas secas têm contribuição decisiva para consolidação do que chama de cidadania ambiental

Renzo Taddei
especial para O POVO
Fortaleza – 24 Out 2009 – 12h48min
Foto: TALITA ROCHA

A ideia de que as variações do clima vão afetar de forma decisiva o futuro das pessoas é uma novidade com a qual habitantes de muitos centros urbanos do planeta – e do Brasil – agora têm que se acostumar. Para a população do nordeste semiárido, não há nenhuma novidade aí. Foi assim desde sempre. Por isso, poderíamos dizer que, pelo menos nesse sentido, há uma certa cearencização da população urbana mundial.

Brincadeiras a parte, o fato é que há lições a serem aprendidas com as sociedades que convivem com ameaças climáticas há muito tempo. Se ficarem confirmadas previsões a respeito da expansão do semiárido brasileiro e da desertificação de partes do cerrado, como resultado do aquecimento global, o Ceará e estados vizinhos irão, certamente, exportar conhecimento a respeito da convivência com o semiárido.

Os esforços de convivência com o semiárido deram-se, no Ceará, por exemplo, em duas frentes. Uma, mais antiga, está pautada nos conhecimentos da cultura popular, que desde muito cedo na história da região – antes mesmo da chegada dos europeus – já buscava decifrar os enigmas colocados pelo clima, fator fundamental para a garantia da sobrevivência. A outra, mas recente, é o uso da técnica e da ciência na criação de condições materiais para que a vulnerabilidade das populações à seca seja reduzida.

No primeiro grupo, encontramos um sem-número de métodos tradicionais de previsão do tempo e do clima, componentes da base de conhecimentos comuns e compartilhados da população sertaneja, ainda que feitos mais visíveis nas figuras dos profetas da chuva do sertão. Além da atividade de prever as chuvas, as estratégias populares combinam ainda formas específicas de organizar sua produção local, como a escolha de sementes e a criação de animais resistentes à pouca chuva. E tudo isso emoldurado dentro de um marco de referência religioso, em que todas as coisas, inclusive o clima, são parte de uma ordem cósmica regida pelo criador, a quem cabe aos sertanejos pedir proteção e amparo.

No segundo, têm papel de destaque o envio de engenheiros ao estado, por Pedro II, ainda no período imperial, de modo a iniciar um longo processo de institucionalização dos esforços de combate aos efeitos das secas. O momento mais decisivo deste processo foi, certamente, a criação do que viria mais tarde a ser conhecido pela sigla Dnocs.

O Dnocs faz um século de vida. É interessante, e inspirador, ver como, depois de tanto tempo trilhando caminhos separados, paralelos, atuando com os mesmos objetivos, a técnica e a cultura popular têm finalmente a oportunidade de se encontrar. Há dois eventos que ocorrem regularmente no Ceará que sinalizam nessa direção. O primeiro é a reunião anual de profetas da chuva do município de Quixadá. Nessa reunião, que acontece no segundo sábado do mês de janeiro, profetas da região anunciam publicamente os seus prognósticos para a estação de chuvas.

O que têm chamado a minha atenção, desde que comecei a observar estes encontros, é o fato de que muitos dos profetas apresentam-se como “pesquisadores“, uma vez que, dizem eles, suas previsões são baseadas em observação sistemática da natureza, e não em inspirações metafísicas. Por essa razão, muitos destes indivíduos não se sentem confortáveis com o rótulo de profetas. Além disso, é comum que suas previsões incluam algum grau de incerteza associada ao clima, da mesma forma como ocorre em previsões meteorológicas.

A diferença, obviamente, está na linguagem: entre os profetas, a incerteza frequentemente é comunicada através da mensagem “só Deus sabe tudo“. Ou seja, fica claro, nas palavras e previsões dos profetas da chuva, que já não há uma rejeição do conhecimento técnico e das formas “urbanas“ de pensamento, como encontramos, por exemplo, nos poemas Cante lá que eu canto cá ou Ao dotô do avião, de Patativa do Assaré.

O segundo evento, que ocorre com mais frequência, são as reuniões dos comitês de bacias hidrográficas, que ocorrem em todo o Ceará, e, graças à atuação do Dnocs, em várias outras regiões do Nordeste. Nos comitês, técnicos e membros das lideranças populares locais discutem as formas de uso e administração das águas dos açudes do Estado. Como não há água sem chuva, não há conhecimento hídrico sem conhecimento meteorológico. É nos comitês, desta forma, que o conhecimento popular e o conhecimento técnico interagem, criando a possibilidade da criação da verdadeira participação democrática.

Esse panorama está inserido dentro de um contexto mundial em que a expressão cidadania ambiental ganha significados novos e importantes. Todos os habitantes desse planeta se entendem, agora, de alguma forma vinculados à questão ambiental global, seja como consumidores, seja como afetados. E exigem informação a respeito do meio ambiente, e voz no que tange a como sociedade e meio ambiente interagem.

Está aí colocado um desafio real, para o mundo e para o Ceará. Infelizmente, é preciso que se diga, no Ceará e nos demais estados do Nordeste, ainda que a participação popular seja fundamental nos comitês de bacias, há certa resistência com relação ao conhecimento popular. A visão técnica a respeito da natureza é preponderante, e muitas vezes outras formas de conhecimento não tem vez nem voz. Na democratização das águas no Brasil, há um passo faltando, o passo da inclusão da diversidade cultural. Para que se crie uma verdadeira democracia ambiental, aqui e em outros países, todas as vozes têm que ter sua vez.

RENZO TADDEI é antropólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

>Dança e cultura

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“Finalmente, nós devemos nos dar conta de que dançar nos braços do nosso par é um produto da civilização européia. Isso mostra como coisas que acreditamos naturais são históricas. Além do mais, elas provocam horror a todos no mundo, com exceção de nós mesmos”

Marcel Mauss (1935), in Richard Parmentier (1994), Signs in Society, pag. 185.