Depoimentos de fé (Estadão)

Artigo original

19 de abril de 2020

Praticantes de diversas religiões relatam sua rotina e líderes refletem sobre a pandemia

Há os que estão rezando sozinhos, em pequenos altares em casa. E os que vão até as janelas fazer orações em voz alta, para si e para a vizinhança. Missas e reuniões online também ajudam, assim como mensagens de fé que chegam em grupos de WhatsApp. Em tempos difíceis, ter uma crença é ainda mais importante, garantem pessoas de diferentes religiões.

E como os líderes religiosos estão avaliando esse momento de pandemia? Ouvimos nove deles, que falam que essa época ensina a valorizar o que há de mais imprescindível: o amor e a solidariedade. Abaixo, você encontra depoimentos de Dom Odilo Scherer, do rabino Michel Schlesinger e do lama Segyu Choepel Rinpoche, entre outros.

Na sacada de casa ou em reuniões virtuais, o estímulo da fé

Morador da Vila Mariana, por exemplo, faz orações que chegam a vários condomínios da vizinhança

Maria Fernanda Rodrigues

Tem sido assim todos os dias desde o fim de fevereiro, quando o coronavírus se tornou uma ameaça mais real aos brasileiros: ao meio-dia e às 21 horas, o desembargador aposentado Luiz Sabbato, de 76 anos, sai na sacada de seu apartamento na Rua Maestro Callia, na Vila Mariana, para fazer uma oração. Ele começou sendo acompanhado apenas pelos vizinhos de condomínio, que convidou pelo grupo de WhatsApp. Com o silêncio das ruas desertas, no entanto, sua voz foi se espalhando pelas redondezas.

Claudia Lopes mora no prédio ao lado e consegue ouvir bem o Pai Nosso e a Ave-Maria. Quando Sabbato faz algum outro comentário, fica mais difícil de entender. “Tenho vontade de ir para a rua, assistir à oração mais de perto, mas é hora de ficar em casa e rezar junto a distância”, diz a fonoaudióloga que faz, com o marido, também todos os dias, o Evangelho no Lar. “É reconfortante essa rotina: todos os dias depois do panelaço vem um silêncio e, então, as orações. No fim, ouvimos os vizinhos se despedindo uns dos outros e voltamos todos para o silência das nossas casas.”

Moradores da Rua Pelotas também querem poder acompanhar mais de perto e mandaram um apelo para Sabbato. “Eu bem gostaria de poder atender e comprar um megafone, mas com todas as lojas fechadas fica difícil. O que tenho feito é treinar a minha voz para eu poder falar mais alto”, disse.

Luiz Sabbato é um dos elos de uma corrente que tem levado mensagem de esperança para as pessoas que estão vivendo sob o medo do coronavírus e estão isoladas em suas casas. Diariamente, ele recebe de um amigo um vídeo ou um áudio com alguma mensagem de fé, enviada por um padre. Ele, então, começou a repassar esse conteúdo aos seus contatos, não sem antes deixar um comentário próprio. O grupo foi crescendo e o desembargador aposentado do Superior Tribunal de Justiça de São Paulo calcula que suas palavras estejam chegando, por meio dessas mensagens ou da oração compartilhada na sacada, a cerca de 30 condomínios da região.

Para que mais vizinhos consigam ouvir as orações, desembargador treina a voz para falar mais alto: “Eu bem gostaria de poder atender e comprar um megafone”Nilton Fukuda/Estadão

“Nós passamos por diversas crises e sempre houve uma esperança de vencer. Coisas como essa que estamos vivendo são sinais que vêm mostrar para a humanidade que é preciso ter mais solidariedade e compaixão. E você acredita em alguma coisa e tem um consolo ou não acredita em nada e vive em desespero”, comentou Sabbato.

Um pouco distante dali, no Jardim Paulista, Lucy de Araújo também se apoia na fé, que ela sempre teve, para superar este momento. Às vésperas de completar 79 anos e muito ativa, ela não parava em casa antes do confinamento. Era coral, clube, ginástica, trabalho voluntário e missa aos domingos. Se dava certo de estar casa às 18 horas, na hora do terço da Rede Vida, ela fazia. Agora, ela reza o terço todos os dias com o padre Lúcio.

“A religiosidade não ficou mais forte para mim neste momento porque ela sempre foi assim, mas ela está mais presente. O fato de ter uma fé, uma religião, algo em que acreditar, nos fortalece e isso está sendo muito importante para mim neste momento de crise, de quarentena, quando estou sozinha resolvendo as minhas coisas”, diz a aposentada, diante de seu pequeno altar, enquanto se acostuma com as novidades: a missa de Páscoa na TV, o banco no celular e o cafezinho com as amigas pelo Skype.

“O fato de ter uma fé está sendo muito importante para mim neste momento de crise, de quarentena”, diz LucyArquivo pessoal

Na casa de Amanda Castro, no Jardim Guedala, o momento é desafiador. A designer de 34 anos tinha acabado de voltar ao mercado de trabalho agora que seu filho mais novo – são quatro crianças entre 3 e 11 anos – havia entrado na escola. Há dois meses ela iniciou o novo trabalho, fazendo home office desde o começo. No primeiro mês tudo correu bem, porque os filhos estavam indo ao colégio. Mas a situação complicou muito com a interrupção das aulas.

“Tem sido muito difícil. São quatro crianças num apartamento, que virou também a escola. Um desafio que nunca pensei que fosse passar. Além de tudo o que desempenhamos no dia-a-dia, estamos sendo obrigados a fazer coisas que não sabíamos fazer antes”, disse Amanda. “Um dia desses, minha filha se estressou porque não conseguia realizar a tarefa e pedi ajuda ao Pai para que ela e os irmãos consigam entender o que está acontecendo.”

A família de Amanda é muito religiosa e frequentar a Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias fazia parte da rotina de todos. Era como se a igreja fosse a continuação de suas vidas, segundo ela. “A igreja fechou por causa do coronavírus, mas está aberta em nossa casa.”

E não falta criatividade para ensinar a religião para as crianças. Dia desses, enquanto ela contava a história do rei Benjamim, do Livro do Mórmon, os filhos construíam uma montanha de palitos e uma coroa de E.V.A. para ele. Na Páscoa, Amanda recortou figuras e colou no pufe da sala para explicar a ressurreição. “Tento fazer com que cada história que conto fique interessante. As crianças aprendem brincando.”

Isso tudo deixou a designer ainda mais perto de sua fé? Ela diz que sim. “Tenho me aproximado mais de Deus sim. Sinto que preciso mais da ajuda dele porque sozinha eu não conseguiria.”

Amanda conta ainda que a família fez os dois jejuns sugeridos pelo líder da igreja como forma de pedir pela “cura física e espiritual”, neste momento em que a humanidade enfrenta o coronavírus. “Eu tenho visto o caos no mundo, as previsões, e acredito do fundo do meu coração que as pessoas não estão contando com um milagre. Tenho certeza que vai haver um milagre e vamos sair disso.”

Espírita, a jornalista Ivani Cardoso também tem fé e todos os dias, ao acordar, ela faz o autopasse de proteção e, uma vez por semana, o Evangelho no Lar. “São ferramentas que trazem mais tranquilidade e você se sente mais protegida e integrada a um grupo que está vibrando pela saúde, pela humanidade, pela paz”, disse Ivani. “A palavra do momento é confiança. Confiança que há um plano espiritual fazendo o melhor.”

Ela costumava frequentar um centro espírita em Pinheiros. Hoje, as reuniões estão sendo feitas pelo aplicativo  Zoom. Na terça-feira, 14 de abril, nada menos do que 80 pessoas participaram virtualmente. Mas seu ritual não para por aí. Todas as noites, ela faz uma mediação de futuro: inspira e expira, imagina cenas alegres do futuro, pensa nas netas, nos amigos e em coisas boas. “Tem me feito um bem enorme me imaginar fazendo as coisas que são importantes no futuro.” Ela conclui dizendo que ouviu uma frase na reunião do centro desta semana que, em sua opinião, devia ser o nosso mantra: “O medo e a esperança não podem conviver no mesmo espaço.”

Para Bernardo Tanis, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise, um momento como o que estamos vivendo, evoca situações vividas quando éramos pequenos: o desamparo. “Nós chegamos no mundo com muita fragilidade e precisamos de alguém que nos proteja. Quando crescemos, percebemos que isso não ficou no passado e que somos frágeis diante da natureza e dos nossos desejos e conflitos”, explica Tanis. “Mas vamos criando recursos, de personalidade, de ego, nos vínculo com os outros, que nos dão o sentimento de segurança e, com isso, vamos enfrentando a vida.”

Tudo muda quando acontecem situações com um potencial traumático muito grande e nos encontramos face a face com esse desamparo, de acordo com o especialista. “E o que fazer nesses momentos? Cada indivíduo tem um repertório muito próprio. Alguns podem pintar, escrever, procurar outras pessoas e dialogar”, diz Tanis. “Outras se reencontram com coisas mais voltadas à ideia de transcendência, com a crença de que existem outras forças desconhecidas e buscam nisso uma proteção e uma sensação de segurança ante a incerteza.”

O psicanalista vai além em sua análise. “Nós também precisamos poder confiar não só em Deus, na transcendência, mas nas autoridades que estão conduzindo a situação. Se elas nos mostrarem, com atos concretos, que estão cuidando de tudo e se importando com as pessoas, nos sentiremos bem mais amparados e confiantes”, acredita. “Se isso não acontecer, o sentimento de desamparo aumenta e buscamos na salvação, na religião, em algum lugar, a possibilidade de nos sentirmos mais cuidados.”


O momento atual, na palavra e na visão de nove líderes religiosos

Uma das mensagens comuns é a necessidade de cuidar e si e dos outros; entrevistados também ressaltam a oportunidade para promover mudanças

Giovanna Wolf e Maria Fernanda Rodrigues

Como as diversas religiões estão vendo este momento de pandemia? Quais são as grandes mensagens trazidas pela crise global provocada pelo coronavírus – e os aprendizados que devemos ter a partir dela? Ouvimos nove líderes religiosos sobre esses temas. Em comum, eles falam da necessidade de amor e solidariedade, e dos cuidados que precisamos ter conosco e com os outros. Também ressaltam que este período é uma oportunidade de refletir e promover mudanças. Confira, abaixo, o que eles disseram:

DEPOIMENTOS

Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo de São Paulo

“Como vamos sair dessa pandemia? Antes de tudo, espero sairmos vivos e com muitas lições aprendidas”, diz Dom Odilo Scherer – JF Diorio/Estadão

‘A pandemia nos dá a ocasião de revermos valores e prioridades na vida’

“Já tive a ocasião de me manifestar sobre a pandemia do novo coronavírus num artigo publicado no Estado, em 11 de abril passado. Esse artigo, de alguma maneira, já responde às questões levantadas no pedido recebido para esta manifestação.

As reflexões feitas em nome da Igreja Católica são numerosas e aquelas do papa Francisco são as mais expressivas e representativas. Ele fala pela Igreja Católica como um todo.

Pessoalmente, vivo como a maioria das pessoas a apreensão diante dos riscos de contágio com o vírus e me preocupo com a saúde de todo o povo. Faço votos e rezo para que os pesquisadores e cientistas encontrem o quanto antes uma vacina para a prevenção contra o vírus e uma medicação eficaz para combater os efeitos dessa virose. Enquanto isso não acontece, uno minha voz à das autoridades sanitárias que recomendam medidas e comportamentos que ajudem a evitar o contágio.

Em relação às ações da própria Igreja, nós suspendemos temporariamente as celebrações da liturgia católica e outros encontros e reuniões das nossas comunidades e paróquias, para evitar aglomerações e o risco do contágio. Enquanto isso, fazemos as celebrações religiosas com um mínimo indispensável de pessoas presentes e as transmitimos aos fiéis pelos meios de comunicação e das mais variadas mídias sociais. Mantemos também uma rede de organizações de ajuda solidária às pessoas doentes ou necessitadas de alimento e outras ajudas, como aos pobres, de maneira geral. Muitas iniciativas estão sendo organizadas pelos meios virtuais.

Nossa preocupação também é alimentar a fé religiosa das pessoas, pois ela tem grande importância nessas horas difíceis. Quando experimentamos e reconhecemos nosso limite, nós damos espaço para que Deus possa agir em nós e através de nós. A fé religiosa não é mera resignação diante dos fatos e situações, mas uma luz que dá um sentido mais profundo às realidades que vivemos.

Como refleti no citado artigo, a pandemia do coronavírus nos traz muitos questionamentos. Antes de tudo, devemos reconhecer que, apesar de todos os recursos de segurança pessoal e coletiva que possamos ter (dinheiro, poder, boa organização econômica e social), continuamos frágeis e expostos a riscos imprevisíveis e, aparentemente, insignificantes, como no caso de um vírus. Isso nos deve levar a ser humildes e a renunciar a qualquer delírio de onipotência ou superioridade.

Penso que a pandemia nos dá a ocasião de revermos valores e prioridades na vida e nossas atitudes diante desses valores e prioridades. A vida e a saúde, a família, cada pessoa e a companhia das pessoas, a sensibilidade diante do sofrimento alheio e a solidariedade, o afeto, o amor gratuito e a ternura, a natureza, nossa ‘casa comum’, a arte e a cultura, como construção de nosso convívio… Todos esses valores ajudam a expressar o melhor que trazemos dentro de nós: nossa humanidade.

Por outro lado, a pandemia nos obriga a rever os modos de vida muito acelerados que levamos, arrastados por uma economia que visa ao acúmulo mais que à satisfação das necessidades básicas. A pandemia oferece uma boa ocasião para refletirmos juntos sobre questões cruciais que movem imensas somas de dinheiro e, ao mesmo tempo, causam imensos sofrimentos pelo mundo: as guerras, as ideologias que semeiam o ódio e a divisão, o consumo desenfreado e o acúmulo de riquezas, que colocam em risco até mesmo a sustentabilidade da vida no nosso planeta. Existe algo de muito errado em tudo isso! Em vez de investir em armamentos, bens supérfluos e consumo de vaidades, por que não investir mais em saúde,  educação, moradia, saneamento básico e bem-estar essencial para todos? Por que não sentar em torno de uma mesa e tomar decisões eficazes para erradicar doenças endêmicas, miséria e fome, que ainda existem e matam milhões de pessoas no mundo a cada ano? Por que duvidar em fazer isso, quando existem os recursos para fazê-lo?

Como vamos sair dessa pandemia? Antes de tudo, espero sairmos vivos e com muitas lições aprendidas. E que essas lições não sejam logo esquecidas. Sinceramente, espero sairmos mais solidários e atenciosos uns para com os outros; mais humildes e gratos por tantos bens da natureza e da cultura, que temos à nossa disposição. E que também saiamos com a fé religiosa reencontrada, ou renovada, dando graças a Deus todos os dias por termos a oportunidade de participar do banquete da vida, que é a coisa mais importante desta vida!”


Roberto Watanabe
Presidente da Federação Espírita do Estado de São Paulo

“Muito já progredimos em matéria de solidariedade e fraternidade. Mas ainda há muito o que fazer”, afirma Watanabe – Arquivo Pessoal

‘Que neste momento possamos refletir sobre o que é perene e que nos traz paz’

“A Doutrina Espírita revela-nos Deus como a inteligência suprema do Universo, que atua como nosso Pai, infinitamente justo, misericordioso e bom. Um Pai que não pune e não castiga, mas que submete toda a Criação às Leis da Natureza, divinas, perfeitas e imutáveis, e que se sobrepõem à vontade e à ação do homem. Uma dessas leis é justamente a Lei do Progresso, que proporciona a todos os seres da natureza evoluir, progredir e alcançar a perfeição intelectual e moral que estas leis possibilitam.

Temos em Jesus o modelo, o guia seguro para esta conquista e que, quando de sua presença entre nós, revelou e viveu as atitudes e os comportamentos que asseguram a conquista deste progresso.

Diante destes conceitos, as dores e dificuldades que nos alcançam precisam ser analisadas por meio de uma visão transcendente da vida, pois em nossa condição de espíritos imortais, que já vivemos várias vidas e viveremos outras, infelizmente, ainda necessitamos do auxílio das dores para despertar para a conquista de valores morais que vão proporcionar a convivência fraterna, o respeito, a paz e a solidariedade entre toda a humanidade, exterminando os conflitos e a acentuada desigualdade social que existe em nosso planeta.

Muito já progredimos em matéria de solidariedade e fraternidade. Mas ainda há muito o que fazer. Grande parte de nós ainda não vê a todos como irmãos, criando barreiras e levantando muros de discórdia e separação.

Periodicamente, a Terra vivencia grandes desafios, sejam os provocados pelo homem ou aqueles que independem de nossa vontade, como as epidemias e os flagelos naturais. E que sem dúvida trazem muita dor. Pandemias como esta, deste momento, revelam a fragilidade do homem diante da própria natureza, servem de doloroso auxílio para o despertamento consciencial e o consequente exercício da solidariedade, da oração, da busca de Deus e da revisão de nossa escala de valores.

Diante da nossa impotência, temporária, no controle e combate deste vírus, façamos o possível para ser úteis na construção de uma atmosfera psíquica mais saudável no planeta, utilizando os recursos poderosos da prece, que nos coloca em sintonia com Deus e nos proporciona sustentação, coragem e esperança, orarmos pelos nossos irmãos que partem para a Pátria Espiritual e seus familiares, pelas equipes médicas e pesquisadores que se empenham na busca de soluções para este inimigo invisível, valorizarmos a convivência fraterna dentro do lar, o exercício dos bons pensamentos, da confiança de que tudo está sob absoluto controle de Deus e das Leis Divinas e da certeza de dias melhores, que sempre chegam.

Que saibamos aproveitar o momento para rever nossos conceitos sobre a vida, sobre as pessoas, auxiliar nossos irmãos em necessidade, dentro de nossas possibilidades, respeitando as orientações da ciência e das autoridades sanitárias, ter contato com bons livros e atividades que nos estimulem na elevação de nossos pensamentos, enfim, refletir sobre aquilo que realmente é perene e que nos traz a tão almejada paz.”


Michel Schlesinger
Rabino da Congregação Israelita Paulista e representante da Confederação Israelita do Brasil para o diálogo inter-religioso

“Se conseguirmos identificar essa oportunidade de amadurecimento e crescimento, sairemos da crise mais rápido e melhor”, diz Schlesinger – Daniel Teixeira/Estadão

‘Único caminho para superar essa crise é darmos as mãos uns aos outros’

“Vivemos um momento de inflexão, muito especial, repleto de desafios e com oportunidades proporcionais a esses desafios. Minha esperança como religioso é que possamos identificar as oportunidades que existem em meio a esses desafios e nos fortalecermos como indivíduo e como sociedade. Se existe uma coisa que o coronavírus ensinou de forma inequívoca é que estamos todos no mesmo barco. O coronavírus não escolheu nacionalidade, idioma, religião, cor de pele, preferência sexual. O coronavírus ameaça a todos da mesma forma. Isso significa que a solução também deverá ser coletiva e a partir da cooperação entre todos. Não existe outro caminho para superar essa crise que não seja darmos as mãos uns aos outros e fazermos juntos essa travessia.

Falo de travessia porque estamos justamente na festa da nossa travessia do Mar Vermelho, o Pessach, quando os judeus lembram o momento de terem saído do Egito e da escravidão, atravessado o Mar Vermelho e conquistado a liberdade. Penso que essa liberdade ainda não é absoluta. A liberdade absoluta só vai acontecer quando ela for para todo mundo, universal, para todos os homens e mulheres. Os que se sentem mais livres estão equivocados. Eles precisam olhar para trás e ver que a travessia ainda não foi realizada por todos e estender a mão para que todos possam fazer essa travessia. E o coronavírus acentua esse sentimento de que estamos todos no mesmo barco, de que somos afetados da mesma forma e que, portanto, temos de buscar coletivamente uma solução.

Se apenas esse aprendizado for conquistado, já vejo uma enorme evolução. Quando olho por uma perspectiva histórica mais recente, depois da Segunda Guerra Mundial, quando 6 milhões de judeus e tantos outros milhões de não judeus foram assassinados, o mundo parecia ter aprendido alguma lição. Foi criada a Organização das Nações Unidas, foi feita a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Havia um sentimento de que nossos destinos estão interligados e que nós temos de cooperar e trabalhar em conjunto. Nos últimos anos, eu identifico um retrocesso nesse processo. Voltou a existir no mundo um discurso ultranacionalista e xenófobo, e o coronavírus é a oportunidade de interrompermos esse processo e voltarmos a entender o quanto somos parte da mesma raça, que é a raça humana, antes de qualquer coisa – antes de religião, de nacionalidade -, e como humanos temos de defender uns aos outros, respeitar uns aos outros, e temos de ver na nossa diversidade a oportunidade de aprendizado e de crescimento. Essa lição é muito poderosa e muito importante. Se no meio dessa crise conseguirmos identificar essa oportunidade de amadurecimento e crescimento, sairemos dela mais rápido e melhor.”


Pastor Marcos Botelho
Igreja Presbiteriana Comunidade da Vila

“Deus ensinou os filhos a serem corajosos e a enfrentarem as situações”, explica o pastor – Marcos BotelhoArquivo Pessoal

‘Aproveite o momento para olhar para onde estamos caminhando’

“A pandemia é um tempo para a humanidade dar dois passos para trás e repensar atitudes em relação ao consumismo desenfreado, à religião e à família. É uma oportunidade para olharmos para a sociedade doentia em que vivemos e para onde estamos caminhando. Também para os pais e as mães darem mais atenção aos filhos e para os cônjuges estarem mais juntos.

Do ponto de vista bíblico, Deus não perde o controle de nada. Mas isso não quer dizer que Ele mandou fazer a pandemia. É uma consequência do que a gente está fazendo na natureza nos últimos anos. As coisas erradas vão ter consequências, o que a gente planta, a gente colhe. Porém, Deus ensinou os filhos a serem corajosos e a enfrentarem as situações.

É uma chance para agirmos de forma diferente, mas isso não significa que realmente as pessoas vão mudar. Muitas vezes, os seres humanos não aprendem: estamos vendo por aí lutas por máscaras e respiradores, que evidenciam o egoísmo. Mas há sempre a opção também de agir pensando no próximo, com amor e solidariedade.

É um momento em que Deus nos colocou para pensar obrigatoriamente. É hora de mudar. O que você quer da sua vida? É um xeque-mate.

Não se isole. Fique em casa, mas não isole a alma. Aproveite o momento para olhar para sua casa, para a família, para a sociedade e para onde estamos encaminhando.”


Pai Guimarães de Ogum
Diretor da Associação Brasileira dos Templos de Umbanda e Candomblé (Abratu)

“As pessoas estão ficando mais próximas da família, estão sentindo falta umas das outras e sendo solidárias”, acredita Pai Guimarães de Ogum – Arquivo Pessoal

‘Espiritualmente, é um momento de recolhimento para acolhimento’

“A humanidade sempre vai colher os resultados das suas escolhas. Não tem sagrado e fé que mude aquilo que é uma escolha da humanidade. A humanidade não respeita a natureza, não toma os cuidados necessários e não respeita limites. As escolhas do homem fazem com que de tempos em tempos vivenciemos essa realidade de tristeza e perda de vida.

Não há uma explicação teológica. É um castigo, mas não é proveniente de Deus, é um castigo da própria conduta que o homem escolheu. É até contraditório Deus, que me abençoa e quer o melhor para mim, resolver castigar pessoas no planeta e punir a humanidade na figura de pessoas inocentes.

Que esse momento possa servir de aprendizado, para que a gente aprenda a cuidar de si e do próximo. A pandemia já está deixando uma mensagem: as pessoas estão ficando mais próximas da família, estão sentindo falta umas das outras e sendo solidárias. Que possamos manter tudo isso quando a doença acabar, e que não precisemos mais de uma pandemia para ser solidário, ser amigo e se preocupar.

Talvez a humanidade aprenda a valorizar coisas a que não está atenta mais. Talvez haja a reflexão de que existe algo maior e mais valioso que o materialismo.

É uma situação oportuna para quem está em família, para cada um dentro da sua fé fazer uma oração, para as pessoas conversarem. Espiritualmente, é um momento de recolhimento para acolhimento, para se aproximar dos parentes. Perdeu-se o costume do almoço em família. As pessoas estão interiorizadas em seus mundos e em suas interligações. Tem muito filho que não conhece a história do próprio pai.

Não podemos perder a crença de que o ser humano quer evoluir. Precisamos dar um jeito de ficar em casa e cuidar da família. Vamos nos amar. E para amar não precisa estar próximo, tem de respeitar.”


Babalaô Ronaldo Antonio Linares
Sacerdote Umbandista, criador do Santuário Nacional da Umbanda

“Nós, umbandistas, acreditamos em um Deus de amor, que ama, compreende e não pune todos por alguns”, explica o babalaôMaria Aparecida Linares/Santuário Nacional da Umbanda

‘Vivemos tempos em que a fé e a ciência precisam andar de mãos dadas’

“A pandemia é um recado à humanidade, qualquer que seja o credo, se o Deus é de amor.  Devemos parar de discutir o que Ele disse e fazer o que Ele mandou: ‘Amai-vos uns aos outros’.

Vivemos tempos em que a fé e a ciência precisam andar de mãos dadas. Portanto, a melhor postura agora é fazer o que diz a ciência, como ficar em casa, evitar contato físico e manter a higiene. Tudo isso sem deixar de lado a fé, porque é sempre um desafio fazer uma coisa com que não estamos habituados, que está além de nossos conhecimentos.

Nessas ocasiões, mais do que nunca, aqueles que creem recorrem a Deus para o conforto que só a religião proporciona. É quando então nos socorremos na fé.

As pandemias são cíclicas e parece que a cada século enfrentamos uma. Há uma grande tendência de culpar alguém nessas ocasiões e quase sempre culpa-se a humanidade, alegando que é um castigo de Deus. Nós umbandistas acreditamos em um Deus de amor, que ama, compreende e não pune todos por alguns.

Rogo a Oxalá que mantenha acesa no coração dos homens a chama da espiritualidade, que afasta as trevas da incerteza.”


Monge Sato
Regente do Templo Shin-Budista de Brasília

“As pessoas estão ficando irritadas e ansiosas, mas é um momento importante de reflexão”, diz o Monge Sato – Valdegran Oliveira Rodrigues

‘Não devemos voltar à realidade da mesma forma que saímos’

“A crise é um perigo mas também uma oportunidade. Se mal tratada, pode nos levar ao buraco. Porém, pode ser um ensejo para sermos melhores. É um momento de aprendizagem, de pensar em quem somos nós como humanidade. Somos a humanidade que cria desigualdades e que trata a natureza como inimiga? Será que é esse tipo de vida que queremos?

Não devemos voltar à realidade normal, depois da pandemia, da mesma forma que saímos. É o momento de pensar o que é uma vida humanitária normal. É competição ou solidariedade? Se nós podemos ser solidários nesta crise, por que não podemos ser solidários em tempos normais?

Essa crise é muito especial. Normalmente, em outras crises, as pessoas que tinham posses se sentiam defendidas. Nesta pandemia ninguém está imune. É hora de rever o privilégio. A terra pertence a todos, mas no sistema que estamos vivendo algumas camadas têm privilégios. Será que todo esse avanço científico e tecnológico está beneficiando todos ou apenas os poderosos?

Será preciso muita serenidade e calma. As pessoas estão ficando irritadas e ansiosas, mas é um momento importante de reflexão, para refletirmos quem nós somos. Essa irritação é porque nós não estamos acostumados a entrar fundo em nós próprios.

É um tempo de autoconhecimento, de prestar atenção não só em si, mas nas relações com as pessoas. Queremos sempre mais, e talvez possa ser um aviso de que o planeta tem seus limites. O grande avanço científico e tecnológico nos promete abundância material mas não o amor, a solidariedade e a equidade.

De repente percebemos a importância do ar. As pessoas ficam sem ar com essa doença, elas morrem porque falta ar. Colocamo-nos todos iguais perante ao ar, que é um bem-comum e universal. E a espiritualidade é tão valiosa quanto o ar.”


Lama Segyu Choepel Rinpoche
Brasileiro, fundador da Fundação Juniper, centro de meditação localizado na Califórnia, nos Estados Unidos

“Nesta hora é preciso ter um sistema que me conduz a ter uma paz interior,” afirma Rinpoche – Galen Stolee/Fundação Juniper

‘Momento atual é uma tragédia, mas também grande oportunidade para transformação interior’

“O mundo está passando por uma transformação e existe muita dor pela perda. É um momento em que a morte está na nossa casa, está na nossa visão o tempo todo. É uma tragédia, sim, mas também uma grande oportunidade para transformação interior.

Um dos ensinamentos do Budismo é que a morte é certa: todos nós vamos morrer, só não sabemos quando. E a morte chega sem aviso. Muitas pessoas vivem como se nunca pensassem que fossem morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido. Quando a morte chegar e eu tiver um minuto ou um segundo para fazer um panorama da minha vida, como é que eu vivi? Como é que foi minha vivência? A vida em certo ponto é respirar, comer, beber, defecar e urinar. Mas a vivência depende da mente.

A vida tem problemas, eles estão aí. Ela é como se fosse uma bolha d’água: a morte chega sem aviso em uma situação como essa que estamos vivendo. Mas como eu reajo a esses problemas? Como eu posso aproveitar esse momento para fortalecer meu pensamento e para mudar os meus padrões internos negativos em padrões que sejam de felicidade, alegria e bem-estar? É por isso que nesta hora é preciso ter um sistema que me conduz a ter uma paz interior, uma serenidade interior, uma harmonia interior. Isso vai ajudar nesses momentos difíceis.

É como diz um provérbio budista: ‘A felicidade e o sofrimento dependem da nossa mente e da nossa interpretação. Ela não vem de fora, nem tampouco dos outros. Toda felicidade e todo sofrimento são criados por nós mesmos, pela nossa própria mente’. Já parou para pensar por que tem gente que tem ojeriza a barata? Muitas pessoas dizem que é nojento, mas quantos animais são nojentos e a gente gosta? Então de onde vem o nojento, da barata ou da cabeça? A barata pode remeter a enfermidades por causa de onde ela anda, mas não é preciso ter pânico dela. A barata não é o problema, o problema é meu estado mental: a barata simplesmente é um gatilho para esse estado mental que eu tenho.

A pandemia nos alerta que precisamos trabalhar nossa mente para situações como essa. Esse vírus não tem uma explicação, tudo acontece, as coisas estão aí. Tem muita teoria em volta disso, mas é uma coisa que acontece no mundo como muitas outras coisas já aconteceram. Perdemos muito tempo criando histórias. Não gosto de dogmas. É um grande momento para a humanidade porque afetou a todos: não é só um país, é o planeta Terra. O mundo todo está afetado e condicionado ao tratamento dessa enfermidade. Se a humanidade encarar esses dois meses em casa não como sacrifício mas como oportunidade de crescimento, acredito que muitas pessoas vão mudar. Não sei se será uma medicina mental para todos, mas acredito que muitas pessoas vão começar a ter uma visão melhor da própria vivência.

É o momento ideal para essa transformação, porque as pessoas estão em reclusão, não têm para onde ir, não há desculpas. Estou em casa há sete semanas aqui na Califórnia, nos Estados Unidos. Para mim é normal ficar recluso, porque eu faço muito retiro. Aqui está lindo, não tem barulho de carro, os passarinhos estão falando melhor. Isso não é maravilhoso? A humanidade poderia aproveitar esse tempo de silêncio não só como um silêncio externo, mas como um silêncio interior. Desse silêncio interior você vai trazer mais amor, mais carinho, mais tranquilidade e mais compaixão para você e para os outros.

Quatro meditações são importantes para as pessoas aproveitarem neste momento: a de acalmar a mente, a de pensamentos positivos, a de cura (fortalecimento do sistema imunológico), e a de compaixão (comigo e com os demais). Toda as sexta-feiras, às 19 horas, estou disponibilizando meditações online para os brasileiros, transmitindo também algumas mensagens.”


Ali Zoghbi
Vice-presidente da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil

“A pandemia demonstrou o quanto somos insignificantes, é uma lição de humildade”, acredita Ali Zoghbi – Adriano Cardos/FAMBRAS

‘‘Essa doença uniformizou a diferença de classe: todos estamos sofrendo’

“Neste momento devemos agir para preservar a vida, porque ela é essencial e prioritária. O Islã é uma religião que acredita e aceita a ciência, e sempre a teve como um suporte e um sinal da misericórdia divina.

A visão do Islã é de que Deus é onisciente: nenhuma folha cai de uma árvore sem a ciência do criador. Acreditamos no livre arbítrio, e também que a sociedade cria suas próprias armadilhas no decorrer da história. Como muçulmano, entendo que nós somos responsáveis por esse tipo de epidemia que está nos assolando, por conta da maneira como estamos lidando com o alimento, com o meio ambiente, com uma série de fatores da nossa trajetória.

Entendemos essa pandemia com súplicas de que esse momento, tão difícil e delicado, que tem provocado mortes de seres humanos, possa ser um prenúncio de uma sociedade mais adequada, mais harmoniosa e mais justa no futuro. A pandemia vem no sentido de demonstrar que os caminhos que estão sendo adotados estão provocando sofrimento e morte e, portanto, precisam ser revistos.

Em tudo na história, quando estamos no meio do processo, não conseguimos fazer uma avaliação precisa, nem do que está acontecendo nem do que está por vir. O tempo vai mostrar para nós com mais clareza quais serão os resultados. Imagino que nada será como antes. Teremos reflexões muito profundas em diversos setores, desde o sistema econômico até o de relacionamento humano. Essa doença praticamente uniformizou a diferença de classe: todos somos seres humanos que estão sofrendo com a situação.

A pandemia demonstrou o quanto somos insignificantes, é uma lição de humildade. Existe uma arrogância do ser humano em entender que talvez ele poderia suplantar as coisas da natureza e suplantar um pequeno vírus como esse. Mas essa doença deixou os seres humanos de joelhos.”

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