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O cearense carrega uma memória cultural, muitas vezes inconsciente, sobre a escassez de água que afetou as famílias no passado. Em entrevista ao Vida&Arte Cultura, o professor da UFRJ, Renzo Taddei, traça aspectos sobre a compreensão do clima e como isso reflete no cidadão
05.02.2011| 17:00
Em Quixadá, os profetas da chuva fazem suas previsões todos os anos (DÁRIO GABRIEL, EM 9/1/2010)
Diante dos ciclos da natureza, profetas preveem o futuro. Os cientistas tornam públicas as medições matemáticas e físicas que ditam a probabilidade de nublar ou fazer sol. Mediadas pela imprensa, as previsões meteorológicas afetam o cidadão e sua maneira de perceber o clima e a cidade. Professor-adjunto da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Renzo Taddei tem relacionamento íntimo com o semi-árido cearense.
Pesquisador há quase uma década das manifestações populares na previsão do clima, em especial na atuação dos profetas da chuva de Quixadá, Renzo vez por outra vem à Fortaleza ministrar palestras, participar de encontros e pesquisas sobre o tema. Na última quarta, o professor recebeu a reportagem numa das salas da Funceme. Na entrevista que você lê a seguir, o pesquisador chama a atenção para alertas globais, como o aquecimento climático. “Já se percebeu que o tom alarmista de catástrofe iminente raramente produz algum efeito positivo. O que produz é uma sensação de impotência geral, como se não há nada que se possa fazer”. (Elisa Parente)
O POVO – Como é possível entender o clima para além do efeito atmosférico?
Renzo Taddei – A questão do clima no Ceará é muito interessante porque, ano passado, segundo a Seplag (Secretaria do Planejamento e Gestão), a economia cearense cresceu 8%. O que é um número incrível. Em 2010, tivemos o pior ano em chuvas nos últimos 30 anos. Foi a pior seca e um ano de bom crescimento para o Estado. Claramente, a agricultura contribui pouco para a economia no Ceará e, cada vez menos, as pessoas se sentem terrivelmente vulneráveis com relação ao clima. Por vários fatores, inclusive por causa dos programas sociais do governo Lula, pelas melhorias de infra-estrutura dos últimos governos do Ceará. Ou seja, a vida está um pouco mais fácil.
OP – De que maneira isto afeta na organização da cidade?
Renzo – Existiu uma estatística onde mais da metade da população acima de 40, 50 anos tinha nascido fora da Capital. Então a presença do imaginário rural é muito forte. Esse é um dos elementos do peso psicológico da seca. Até quem não tem nada a ver com agricultura, se alegra ao ver chuva. A história do bonito pra chover traz uma continuidade e uma ruptura, principalmente com relação às gerações mais novas que nasceram em Fortaleza. Entrevistei um agrônomo que me disse ter o hábito de desligar a água enquanto se ensaboava no chuveiro. E o filho dele perguntou por que ele desligava a água se o banho não tinha acabado. Ele se deu conta de que a geração mais nova sequer tem memória a respeito da escassez de água do seu Estado. A última grande crise em Fortaleza foi 1993, na construção do Canal do Trabalhador. Fortaleza é a única capital encravada no semi-árido, mesmo assim as pessoas não têm essa consciência. Você anda por Fortaleza e vê que cada lançamento imobiliário precisa ter um parque aquático, não é nem piscina. É o uso arquitetônico e recreativo da água. Só se compara a Las Vegas, que é outro lugar de abundância irresponsável encravado no deserto. Então as pessoas não têm experiência da falta de água, mas têm uma herança cultural de hipervalorização dela. Fortaleza é orgulhosa de sua pujança e gasta como novo rico. É um lance que tem a ver com cultura. Enquanto isso, o Canal da Integração está trazendo um mundo de água e a transposição do Rio São Francisco vai trazer ainda mais para Fortaleza não ter problema pelos próximos 30 anos.
OP – Mas isso também pode ter efeito contrário.
Renzo – Isso é perigoso porque, a longo prazo, não dá para achar que é sustentável você consumir. O grande debate da transposição, da construção do Castanhão e do Canal da Integração é esse. Está sempre aumentando a infra-estrutura que acumula água ao invés de educar a população para consumir menos. Não que dê para fazer os dois ao mesmo tempo, mas o fato é que os últimos governos têm preferido aumentar a oferta de água.
OP – Uma das linhas da sua pesquisa centra foco na antropologia da incerteza e do futuro. De que maneira isto está ligado ao estudo do clima?
Renzo – Isto talvez seja a parte mais desafiadora de entender qual o papel que o clima tem na nossa vida cotidiana. Porque a meteorologia rapidamente se deu conta de que a atmosfera é algo muito complexo. Agora a estação chuvosa no Ceará é algo muito mais complicado. Porque o agricultor quer saber hoje se vai ter chuva em maio. Não tem nenhum radar que mostre isso, mas a meteorologia usa a física e a matemática criando modelos que simulam no computador a maneira como funciona a natureza. Mas isso tem limitações. Por isso se fala em termos de probabilidade, porque às vezes uma coisa pequena pode mudar tudo. Então a meteorologia tem que conviver com essa relação complicada com a sociedade.
OP – Porque é tão difícil lidar com a incerteza?
Renzo – Tem inúmeras pesquisas que mostram que temos dificuldade tremenda de reter isso. A informação probabilística demanda um esforço cognitivo muito grande. É realmente complexo. É como se fôssemos programados mentalmente para não operar com probabilidade e para fingir que tudo é certo ou errado. Temos essa tendência a polarizar as coisas. E isso influencia a relação da sociedade com o clima. Veja, por exemplo, a estratégia dos agricultores. O agricultor familiar está o tempo inteiro prestando atenção em previsões do clima, só que não usa nenhuma. Ele espera o solo ficar úmido numa certa profundidade, para depositar a semente. Só que as primeiras chuvas da estação são fracas, o broto morre e ele precisa começar tudo de novo.
OP – A incerteza é parte da natureza.
Renzo – Acompanho os profetas da chuva desde 2002. É muito recorrente que alguns deles se digam observadores da natureza, e não profetas. Ser profeta tem uma carga simbólica religiosa muito forte e é um peso muito grande pra eles carregarem nas costas. Então eles fazem as previsões e, no final, dizem que quem sabe mesmo é Deus. O interessante é que, em termos de conteúdo, eles dizem exatamente o que a Funceme diz em termos de probabilidade. Existe uma incerteza envolvida. Então as pessoas aceitam, mas não dão à ciência o direito de viver as incertezas.
OP – Como a meteorologia figura nesta história?
Renzo – Uma parte dessa confusão tem a ver com a história da meteorologia no Ceará. Ela começou com muita fanfarronice, voando de avião, fazendo uma pulverização nas nuvens com sal de prata pra fazer chover mais rápido. Só que você percebe que o spray não produz chuva, só apressa. Então essa tecnologia sempre foi muito controvertida. Para uma mentalidade do sertão, isso equivaleria dizer que o homem da cidade se acreditava com o poder de produzir chuva. E tanto é assim que o Patativa do Assaré fez o poema Ao dotô do avião, onde ele coloca vários elementos importantes. O homem se adequa ao ciclo da natureza e não vice-versa. No Ceará, o clima sempre esteve ligado à religião. Então era desrespeitoso e absurdo achar que o cidadão iria produzir chuva.
OP – As pessoas já absorveram a gravidade do aquecimento global?
Renzo – Não sei se, algum dia, entenderemos o aquecimento global. A natureza funciona em ciclos. O dia e a noite, as estações do ano. São ciclos que, por serem curtos, a gente consegue entender bem. Só que existem aqueles que são muito longos. Costuma-se dizer que, aqui no semi-árido, existem ciclos onde duas ou três décadas são mais secas, depois outras mais chuvosas. Pode ser que exista um ciclo bem mais longo que a gente não tem nem ideia. Se o futuro provar que estamos errados, tudo bem, fizemos o que tinha de ser feito.
OP – Então existe uma visão positiva para o futuro?
Renzo – A ciência é feita por incertezas, ela só caminha porque ensina o que não sabe. Mas existe o que chamam de princípio precaucionário. Que diz que você precisa medir o quanto você perde se tiver certo e não fazer nada e o quanto perde se estiver errado e fizer muita coisa. Então imagina que não existe aquecimento global nenhum, só que tomamos as atitudes necessárias. O que a gente perde? Existe uma perda em termos de crescimento econômico. Agora a outra opção é que existe um aquecimento global, ele está acontecendo, tem a ver com produção industrial, mas a gente assume que não está acontecendo e não faz nada. O que perdemos no futuro? Várias pessoas dizem que não fazer nada pode ter um custo muito alto. A chance de estarmos certos é grande e mesmo que estejamos errados, tem como recuperar. Existe ainda um outro lado em que talvez não tenhamos como recuperar. Talvez a gente de fato passe por uma sequência grande de eventos extremos. O lance do aquecimento climático não tem a ver com o mundo ficar mais quente todo dia. O ponto é que eventos extremos, como chuva, furacão, tendam a ser mais frequentes. O nível do mar já está subindo, algumas nações já começam a se transferir. E voltamos à história de Fortaleza ser a Las Vegas do semi-árido. Não dá pra falar em cortar a emissão de carbono sem reduzir atividade industrial. E não podemos falar de aquecimento global sem redução de consumo. E como faz para a população da Aldeota parar de consumir tanto? Nos meus momentos mais pessimistas, eu penso que a humanidade só consegue se re-programar mentalmente em escala continental numa experiência de quase morte. O que significa uma imensa catástrofe. E aí todo mundo para e se repensa. Mas eu sou professor e tenho que acreditar que a educação tem o seu valor.