Portaria da AGU diz que governo pode intervir em área indígena
Portaria da Advocacia-Geral da União publicada ontem (17/07/12) no “Diário Oficial da União” prevê que o poder público faça intervenções em terras indígenas sem a necessidade de consultar índios ou a Fundação Nacional do Índio (site da ABA, 17 de juulho de 2012).
Nota de repúdio da ABA:
UM ATO NOCIVO E ARBITRÁRIO
A ABA vem a publico manifestar o seu repúdio a recente Portaria No. 303 elaborada pela AGU e publicada no DOU. A pretexto de homogeneizar o entendimento dos organismos de governo no que tange a aplicação das chamadas condicionantes para o reconhecimento de terras indígenas apontadas pelo STF durante a decisão sobre a TI Raposa/Serra do Sol, esta portaria pretende impor uma leitura da legislação indigenista brasileira em total dissintonia com os interesses indígenas, com os princípios constitucionais estabelecidos na Carta Magna de 1988 e com as convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.
É um ato totalmente arbitrário e inadequado pretender resolver questões complexas e da maior importância para a ação indigenista mediante uma simples portaria. As chamadas condicionantes estabelecidas no curso de um processo judicial específico e cheio de singularidades, não poderiam de maneira alguma ser tratadas de modo caricatural e mecânico, ignorando por completo as múltiplas interpretações antropológicas e jurídicas que podem receber.
A portaria atropela ainda de maneira grosseira e acintosa a própria ação indigenista e a distribuição de mandatos e competências entre os órgãos públicos. Assim ignora os esforços desenvolvidos pela própria FUNAI e pela Secretaria-Geral da Presidência da República, em amplos foros de debate, no sentido de promover a regularização do direito de consulta, considerando-o procedimento dispensável sempre que algum governismo governamental vier a entender, por critérios puramente internos, que está lidando com questão de superior interesse nacional (art. 1º, itens 5, 6 e 7). Por outro lado com uma simples canetada e sem qualquer justificativa que o embase, transfere para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade as responsabilidades, o poder de administração e controle sobre uma imensidade de terras indígenas (art. 1º, itens VII, IX e X).
Ao leitor atento a portaria não deixa dúvidas – sem um embasamento doutrinário e sem cercar-se dos devidos cuidados de estudar a questão a fundo e promover os debates necessários a cristalização de um entendimento democrático, a AGU selecionou questões totalmente diversas colocadas a administração pública no seu trato com as comunidades indígenas e procurou dar-lhes a interpretação mais restritiva e negativa possível aos direitos dos indígenas.
Por seu primarismo e incongruência, buscando restringir e amesquinhar os direitos indígenas presentes na CF-1988, a ABA considera a portaria 303 um instrumento jurídico-administrativo absolutamente equivocado e pede a sua imediata revogação.
Bela Feldman Bianco e João Pacheco de Oliveira
Presidente da Associação Brasileira de Antropologia e Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas
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REPÚDIO CONTRA A PORTARIA 303 DA ADVOGACIA GERAL DA UNIÃO QUE REAFIRMA OS ATAQUES DO GOVERNO DILMA AO DIREITOS TERRITORIAIS DOS POVOS INDÍGENAS
O Governo da Presidente Dilma, por meio da Advogacia Geral da União baixou no último dia 16 de julho a Portaria 303, que diz considerar “a necessidade de normatizar a atuação das unidades da AGU em relação às salvaguardas institucionais às terras indígenas”, supostamente nos termos do entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal na Petição 3.388-Roraima (caso Raposa Serra do Sol).
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB manifesta publicamente o seu total repúdio a esta outra medida autoritária do Governo Dilma que como o seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, considera os povos e territórios indígenas ameaças e empecilhos a seu programa neodesenvolvimentista, principalmente à implantação do PAC e do PAC 2, pois dificultam os processos de licenciamento das obras do Programa (hidrelétricas, ferrovias, rodovias, usinas nucleares, linhas de transmissão etc.)
A APIB repudia esta medida vergonhosa que aprofunda o desrespeito aos direitos dos povos indígenas assegurados pela Constituição Federal e instrumentos internacionais assinados pelo Brasil. Entre outras aberrações jurídicas, a Portaria relativiza, reduz e diz como deve ser o direito dos povos indígenas ao usufruto das riquezas existentes nas suas terras; ignora o direito de consulta assegurado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); reduz o tratamento dos povos indígenas à condição de indivíduos, grupos tribais e comunidades; afirma que são as terras indígenas que afetam as unidades de conservação, quando que na verdade é ao contrário, e, finalmente, enterra, ditatorialmente, o direito de autonomia desses povos reconhecido pela Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
A Portaria 303 da AGU, publicada oportunamente depois da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e das pressões da OIT, e ainda às vésperas do recesso parlamentar, que poderia comprometer a aprovação de medidas provisórias e projetos de lei de interesse do Executivo, aprofunda o estrangulamento dos direitos territoriais indígenas iniciados com a paralisia na tramitação e aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas, engavetado há mais de 20 anos na Câmara dos Deputados, e com a edição das Portarias Interministeriais 420 a 424, que estabelecem prazos irrisórios para a Funai se posicionar frente aos Estudos de Impactos e licenciamento de obras. Isso, sem citar em detalhes a aprovação da PEC 215 e a falta de coragem em vetar na íntegra as mudanças ao código florestal defendidas pela bancada ruralista.
A AGU desvirtua e pretende reverter o já arquivado processo do STF, cujo plenário conforme reiterado em 23 de maio de 2012 pelo ministro Ricardo Lewandowski, já declarou especificamente a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, observadas 19 condições ou salvaguardas institucionais. Só que tal decisão não tem efeito vinculante, segundo o magistrado. Ou seja, não pode ser forjada a ligação entre o processo da Raposa Serra do Sol com as demais Terras Indígenas do Brasil. Do contrário fica evidente o propósito deste Governo de submeter mais uma vez o destino dos povos indígenas, a demarcação de suas terras, aos interesses do agronegócio, do capital financeiro, das empreiteiras, da grande indústria, das corporações e da base política de sustentação que lhe garante governabilidade no Congresso Nacional e em outras estruturas do Estado.
Este tratamento dado aos povos indígenas não tem cabimento num Estado democrático de direito a não ser num Estado de exceção ou num regime ditatorial cujas políticas e práticas a atual presidente da República e seus mais próximos assessores conhecem bem.
Se o governo da Presidente Dilma tomar a determinação de levar em frente à aplicabilidade destes instrumentos jurídicos que legalizam a usurpação dos direitos indígenas, principalmente o direito sagrado à terra e o território. Estará notoriamente desvirtuando e tirando a credibilidade de seus propósitos ao chamar os povos indígenas, por meio de seus dirigentes e instâncias representativas, a dialogar sobre a promoção e proteção dos direitos indígenas no âmbito de distintos espaços como a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) que promove a regulamentação dos mecanismos de aplicação do direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado, estabelecido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além de tudo, irá contrariar os princípios da boa fé e do efeito vinculante deste instrumento internacional, incorporado desde 2004 no ordenamento jurídico nacional.
A APIB lamenta que um Governo que se diz democrático, em nome das pactuações que lhe dão sustentação, do progresso e do crescimento econômico, sacrifique os direitos coletivos e fundamentais dos primeiros habitantes deste país, que não obstante as diversas tentativas de dizimação promovidas pelo poder colonial e sucessivos regimes de governo, é depositário da maior diversidade sociocultural do mundo, com mais de 230 povos indígenas reconhecidos e várias dezenas de povos ainda não contatados.
A APIB reafirma a sua missão de lutar pela promoção e defesa dos direitos dos povos indígenas.
Brasília, 18 de julho de 2012.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
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Procuradoria questiona portaria que permite intervenção em área indígena (Folha de São Paulo)
JC e-mail 4543, de 19 de Julho de 2012.
O Ministério Público Federal vai contestar na Justiça a portaria editada anteontem pela Advocacia-Geral da União que libera a intervenção em terras indígenas sem a necessidade de consultar os índios ou mesmo a Funai (Fundação Nacional do Índio).
Para a Procuradoria, a medida adotada pelo órgão é “absurda” e representa um “retrocesso” na causa indígena. “A portaria é completamente inconstitucional, não há ali nenhum suporte legal”, disse Marco Antônio Delfino de Almeida, procurador responsável por tratar de assuntos relacionados aos índios.
A AGU diz que, em respeito à “soberania nacional”, será possível construir bases militares, estradas ou hidrelétricas em áreas demarcadas “independentemente de consulta às comunidades indígenas”. A Constituição e convenções internacionais preveem consultas aos índios sobre qualquer atividade que os afetem.
Segundo Almeida, o STF ainda não se posicionou sobre a revisão do tamanho de terras indígenas. Áreas demarcadas antes da Constituição de 1988 não contavam com estudos antropológicos, o que acabou gerando distorções. Pela portaria da AGU, não será possível revisar o tamanho de terras.
Até ontem à noite a Funai não havia se pronunciado sobre a portaria da AGU.