Desastres naturais forçam migrações de 60 mil por dia (O Globo)

Vítimas das mudanças climáticas deslocam-se em busca de meios de subsistência

POR RENATO GRANDELLE

Somalis caminham em direção a um campo de refugiados no Quênia: desertificação do campo – Rebecca Blackwell/AP

BOGOTÁ — O Pentágono chama de “multiplicação de ameaças”. O secretário de Estado americano, John Kerry, alerta para os “novos refugiados”. Sua antecessora, a pré-candidata à Presidência dos EUA Hillary Clinton, ressalta a “guerra pela água”. Paddy Ashdown, um político veterano britânico, acredita que o planeta vive uma “crise humanitária”. Não importa o termo, a população desalojada pelas mudanças climáticas e pelas catástrofes naturais preocupa autoridades mundiais. Estima-se que, desde 2008, cerca de 22,5 milhões de pessoas deixaram suas casas, por ano, devido a eventos extremos do clima — o equivalente a 62 mil casos diários. Este cenário ainda pode piorar.

Essas pessoas são desabrigadas por problemas como a desertificação de terras, ou mesmo por catástrofes como tufões e inundações, mais comuns devido às mudanças no clima. A odisseia em busca de moradia pode começar dentro do próprio país. Normalmente, os refugiados migram do campo para áreas urbanas, onde enfrentam problemas, já que habilidades como o cultivo agrícola não podem ser aproveitadas.— Cada centro urbano deve desenvolver uma forma para reduzir o contraste entre a elite local e os miseráveis que chegam — defendeu Beatriz Sanches, professora de Direito Internacional da Universidade de Los Andes, na Colômbia, durante o Encontro das Américas sobre as Mudanças Climáticas, que aconteceu em Bogotá. — Mesmo diante das dificuldades das zonas rurais, deixamos que um Deus Todo Poderoso resolva tudo.

EXCLUÍDOS NA CIDADE

Javier Gonzaga, da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade de Caldas, também da Colômbia, assinala que os migrantes climáticos não conseguem mais manter os meios seculares que garantiam sua sobrevivência.

— Não é possível saber se a principal causa da migração é a pobreza ou a destruição do ecossistema rural. Ambos estão unidos — explica Gonzaga. — A vulnerabilidade social, associada às migrações ligadas ao clima, está aumentando com diferentes intensidades em cada país. Alguns cenários alarmistas previstos pela ONU para 2070 já podem ocorrer no meio do século.

A ONU e algumas instituições de pesquisa, como o Centro de Monitoramento de Deslocamento do Conselho Norueguês de Refugiados, acreditam que o número de pessoas desalojadas pelo clima pode chegar à marca de 250 milhões, por ano, em 2050.

A categoria de migrantes climáticos não é protegida pelo direito internacional, como são os refugiados de guerra que há meses deixam a Síria ou as vítimas de violações de direitos humanos. Então, podem ser obrigados a voltar para a região devastada. Também precisam adaptar-se a diferentes legislações, idiomas e culturas, e podem ser excluídos de sistemas básicos de assistência social, como o acesso a escolas ou a programas de saúde.

Refugiados sírios passam por cerca para atravessar a fronteira entre a Sérvia e a Hungria: além da guerra civil, país asiático sofre com estiagem há cinco anos – Bela Szandelszky/AP

Para piorar, há uma confusão crescente sobre as categorias dos refugiados. Os milhares de migrantes que tentam trocar a guerra civil na Síria pela Europa Ocidental fogem também da seca. Entre 2006 e 2011, o país asiático sofreu com a estiagem. O mesmo problema se manifesta na África, onde somalis e etíopes testemunham a desertificação do campo, inviabilizando a agricultura de subsistência. Tentam buscar uma solução nas balsas lotadas que atravessam o Mar Mediterrâneo, em direção à Itália.

— Em qualquer lugar do planeta, as mudanças climáticas podem levar à desertificação e à perda da qualidade de vida. Com um ambiente propício à violência, pode ocorrer um cenário semelhante ao da Síria — avalia o economista Pavan Sukhdev, embaixador da ONU para Meio Ambiente, que esteve semana passada no Fórum Agenda Bahia. — E há locais em que o clima, sozinho, já serve como um gatilho para a migração. O derretimento de calotas polares da Antártica e do Ártico, por exemplo, pode levar a um aumento do nível do mar de até seis metros neste século.

A inundação teria consequências drásticas em Bangladesh, o oitavo país mais populoso do mundo, que perderia para as águas cerca de 17% de seu território até 2050. Estes eventos extremos levariam ao surgimento de mais de 20 milhões de refugiados climáticos naquela região.

Alguns Estados insulares já providenciam o deslocamento de sua população. O arquipélago de Kiribati, no Oceano Pacífico, comprou terras na vizinha Fiji. No Oceano Índico, as Maldivas perderiam todas as suas 1.200 ilhas. A economia, baseada no turismo e na pesca, seria aniquilada. Por isso, seu governo planeja construir ilhas artificiais flutuantes, enquanto negocia programas de evacuação com autoridades da Austrália e da Índia.

— A falta de preparo para lidar com as catástrofes naturais sempre foi um grande desafio para as nações — lamenta Irwin Redlener, diretor do Centro Nacional de Preparação para Desastres dos EUA. — Às vezes, os custos são importantes. Em outras ocasiões, há fatores psicológicos e culturais que inibem a adoção de uma “preparação mental” entre os cidadãos ou mesmo dos chefes de Estado.

MORTE DOS CORAIS

Segundo Sukhdev, as consequências das mudanças climáticas nos oceanos podem repercutir mesmo nos países que não correm risco de serem afundados.

— Os oceanos vão absorver o excesso de carbono na atmosfera e, com isso, as águas ficarão mais ácidas — descreve. — A vida marinha dos corais, que são a fonte de alimentação dos peixes, está ameaçada. Até 600 milhões de pessoas que dependem da indústria pesqueira nos litorais não conseguirão manter sua atividade econômica e precisarão migrar. E, muitas vezes, estão próximas a zonas urbanas superpopulosas, onde não devem encontrar espaço ou oportunidades.

Coordenador do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (Ceped-UFSC), Antonio Edésio Jungles pondera que o Brasil melhorou recentemente seus sistemas de alerta precoce contra desastres climáticos. O país, no entanto, continua exposto a fenômenos cada vez mais intensificados pelas mudanças climáticas.

— As consequências são lentas e graduais. Em Santa Catarina, por exemplo, temos problemas de estiagens cíclicas, o que faz com que a população se afaste e as empresas deixem de se instalar em algumas regiões. Essas catástrofes climáticas devem se acirrar nos próximos anos — comenta. — Tudo tem um limite, um ponto em que o equilíbrio com a cadeia produtiva, a flora e a fauna fica comprometido, e muitas vezes estas mudanças não são rapidamente percebidas.

Sukhdev já enxerga mudanças provocadas pelo clima no país.

— Algumas cidades costeiras, como Salvador, Rio, Recife e São Luís, estarão entre as prejudicadas pela modificação no ecossistema marinho — revela. — Em São Paulo, a temperatura registrada no último dia de inverno foi de 37 graus Celsius. Nem no verão este índice seria comum.

Perguntado sobre qual região do planeta estaria mais a salvo das mudanças climáticas — e receptiva aos migrantes —, Sukhdev foi taxativo:

— Estamos em uma estrada e está vindo um caminhão. Podemos sair da frente dele daqui a um segundo ou daqui a cinco ou dez, mas ele vai passar de qualquer forma. Não há uma região. O que existe é a economia verde e sustentável. E ela precisa ser adotada.