>Povo vê nos grilos o castigo de seus erros (Jornal do Brasil)

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Outubro de 1971
Dos enviados especiais Ricardo Noblat e Josenildo Tenório

Altinho, agreste de Pernambuco – Parece um filme de ficção ou conto de terror: uma cidade ocupada por milhares de grilos que se multiplicam numa velocidade alucinante e que alteram os hábitos e regem agora a vida de quase 6 mil pessoas. Dez famílias abandonaram suas casas. O mercado e o açougue públicos fecharam. Uma velha enlouqueceu. O povo faz procissão, penitência, promessa e acha que é castigo de Deus, sinal do fim do mundo.

Há oito dias que, todas as manhãs, 10 homens contratados pela Prefeitura de Altinho enchem um caminhão de grilos mortos. Mesmo assim, cai a noite e milhares de outros grilos começam a chegar. Dá, sinceramente, a impressão de chuva grossa nos telhados. As casas cheiram a inseticida e o seu uso despreparado está provocando casos de intoxicação e alergia, principalmente entre as crianças.

José Brasil, dono de um dos maiores armazéns de Altinho, foi embora da cidade porque não suportou mais os grilos. Chiquinho Félix, mascate, mudou-se para um sítio longe de Altinho. Dona Claíde Peri passou uns dias dormindo com seu filho de dois meses na casa do compadre Adolfo mas, anteontem, foi embora para Caruaru e levou seu menino intoxicado.

A viúva Antônia Cambira teve um ataque de loucura e tem a impressão de que milhares de grilos cantam no seu ouvido e.correm sabre o seu corpo. Dona Estela Barros, venerável senhora da cidade de Altinho, está doente com alergia a inseticida. A filha, de criação da beata Maria da Conceição vomita tudo quê come. Mulheres menos ilustres enchem as poucas farmácias da cidade atrás de comprimidos e remédios, em gotas.

António Severino, 81 anos, se exalta e grita aos homens e mulheres que encontra pelas ruas:

— Gente sem memória. Meu padim Pade Ciço disse que nos anos 70 ia enlouquecer tanta gente que não haveria corrente para prender a todos. É castigo dos céus, é sinal de que o fim do mundo está perto. É uma das sete pragas do Egito antigo.

Dona Senhorinha, 97 anos, a pessoa mais velha de Altinho, é da mesma opinião. Cega, ouvindo mal; ela conta como foi que os grilos chegaram e ocuparam a cidade:

— Menino, eles chegaram primeiro de pouquinho. Faz quase um mês. Mas há uma semana, tarde da noite, parecia que chovia grosso. Logo depois da zuadeira nos telhados, começou a cantoria infernal dos grilos e não parou ainda.

À noite ninguém sai às ruas de Altinho, com medo de ser atacado pelos grilos. Os animais pequenos são guardados porque muitos já morreram atacados pelos insetos. As portas são cerradas cedo. E tem início a interminável batalha entre os grilos e a humanidade de Altinho, armada de todo tipo de inseticida.

Em uma semana, a Cooperativa Agropecuária de Altinho vendeu 150 latas de inseticida, 320 quilos e 70 pulverizadores. Apurou Cr$ 1.200,00, o que representa pouco menos da metade da média de lucro a cada mês. Tem estocados 451 quilos e a quase certeza de vendê-los todos dentro de mais 10 dias.

Véspera de pânico

Durante o dia a cidade é quase deserta. O movimento caiu. Os homens negociam fora o feijão, o algodão, o milho e os bois de Altinho. Os grilos já destruíram mil sacos de feijão. As mulheres varrem os insetos das ruas das suas casas até pelas 10 horas da manhã. Prendem os meninos e passam o resto do dia entre as ocupações caseiras, antigas, e o costume novo de matar grilo que cai constantemente do telhado.

Percebe-se perfeitamente o nervosismo da população. A mansidão desses homens e mulheres está dando lugar a uma certa agressividade, a um certo pavor, a um possível início de pânico, talvez. Os homens que ficam na cidade, principalmente os mais velhos, olham aqueles tapetes marrons de grilos pelas calçadas e pelo meio das ruas.

Ouvem o estalo dos insetos esmagados pelos pés de gente ou pelas rodas dos poucos carros que passam pela cidade e se aquietam quando se lembram das profecias do padre Cícero ou das advertências de frei Damião:

— Os pecadores receberão castigos terríveis.

Os grilos cantam dia e noite. Preferem os lugares de maior claridade, mas fogem do sol forte para não morrer. Se o canto ou o ruído de um, dentro de uma casa, é intolerável, imaginem o canto de milhares, nas casas, por toda parte.

O prefeito e o padre

O prefeito Júlio Rodrigues garante que faz o que pode. Gastou mais de Cr$ 1 mil em inseticidas, o que é despesa grande para o pequeno orçamento da Prefeitura, enviou telegramas às autoridades, pediu providências e paga a diária de dois guardas sanitários que, pulverizam as casas do centro da cidade.

— É quase impossível convencer as pessoas que estão longe de que tudo isso é a pura verdade. Quem acredita, sem ver, que enchemos um caminhão todos os dias com grilos mortos? E que muitas vezes eles são tirados de dentro das casas em carrocinhas de mão? E que eles chegam todas as noites em grandes nuvens e fazem um barulho danado nos telhados?

O prefeito luta ainda com outro problema, também multo importante para sua condição de político: as sistemáticas e duras críticas que lhe faz o padre Pedro Solano. Padre Pedro, de 57 anos e que dorme com algodão nos ouvidos para não ouvir os grilos, reuniu duas vezes o povo de Altinho e lançou duas proclamações.

Na primeira, depois de alertar para os perigos de uma possível epidemia, fez um pedido ao prefeito e uma crítica:

— Seu Júlio, seja mais amigo do povo, não seja amigo dos grilos que estão prejudicando sua administração. Apague as luzes da cidade todas as noites que eles vão embora. Fique conosco, não fique com os grilos.

O prefeito apagou a luz mas os grilos não foram embora e a metade da população ficou revoltada porque nessa noite houve muito roubo em Altinho. Na segunda proclamação, a mais dramática, padre Pedro traçou um quadro terrível da situação e convocou o povo para procissões diárias a São Sebastião:

— Minha gente, os grilos continuam em todo canto. A gente vê na televisão dizerem que Altinho está se acabando com a praga dos grilos. Outros garantem que estão chegando homens com metralhadoras, canhões, bomba atômica, para acabar com á peste. Vamos fazer procissão todo fim de tarde.

Invasores no cinema

O sino da matriz toca toda tarde às 4h. De terço na mão, véu na cabeça, as velhas senhoras de Altinho enchem as ruas em procissão, os homens, de chapéu na mão muito sérios seguem atrás. As mocinhas, descalças em penitência, vão na frente, juntamente com as crianças. Padre Pedro vai perto, do andor do santo. De vez em quando, formula uma súplica em voz alta:

— Leva os grilos embora, meu Sebastião.

A beata Maria da Conceição reza toda noite em casa um rosário. Dona Maria Beatriz de Andrade faz o mesmo. Dona Maria Patrocínio prometeu comungar três sextas-feiras seguidas se os grilos desaparecerem. Dona Olindina da Conceição garantiu da São João da Montanha um retrato do crucificado se a praga acabar.

O único cinema da cidade, diversão de todo fim de semana, ainda funciona por pura teimosia do seu dono: é um dos lugares preferidos dos grilos, porque suas velhas cadeiras oferecem esconderijos inexpugnáveis. O baile A Noite do Seu Love Story está ameaçado de não se realizar porque até os jovens de Altinho andam desanimados.

As notícias de outras cidades aumentam ainda mais o desespero do povo de Altinho: os grilos estão chegando em grandes quantidades às cidades de Lajeado, Ibirajatuba, Cachoeirinha, Jurema, Panelas, Lagoa do Ouro e até Caruaru, onde já ocuparam a Faculdade de Direito.

Além de São Sebastião a outra esperança dos moradores de Altinho é de que os focos de proliferação dos grilos sejam descobertos e pulverizados. Mas, para isso, eles têm de ser acreditados em sua desgraça e ainda não o são.